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“Isso
 pode parecer uma reflexão bastante óbvia, mas a filosofia 
frequentemente é um meio de encontrar o contexto apropriado para dizer o
 óbvio.” 
“Poderíamos
 dizer que a verdadeira moralidade é um tipo de misticismo não 
esotérico, tendo sua fonte em um amor austero e sem consolo pelo Bem.”(de A Soberania do Bem) 
“David me encarou com os olhos arregalados, injetados. 
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 E qual acha que será a consequência disso? Não, não. É melhor fazer a 
coisa errada pelas razões certas do que fazer a coisa certa  pelas 
razões erradas. Ah, o senhor não compreende... 
   
 Mas eu compreendia muito bem. Podia ter ficado desesperado com a grande
 confusão do destino humano: aquelas insinuações semientendidas de certo
 e errado que nos levam, por estradas iluminadas pela luz crepuscular, 
para um ponto do qual não há retorno...” (de A moça italiana) 
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de fevereiro de 2014) 
Há meio-século, em A moça italiana (1964), um de melhores romances de Iris Murdoch
 (1919-1999), o protagonista retornava contrafeito, devido à morte da 
mãe tirânica, para a casa onde fora criado e cuidado por uma sucessão de
 preceptoras italianas (as quais se confundiam em sua mente). Ali 
encontrava o resto da família (além da última na sequência de “moças 
italianas”) mergulhado num inferno de desatinos sexuais e crises 
passionais. Como o único que conseguira “escapar” do círculo, todos lhe 
pedem ajuda[1], mas falha de forma lamentável, fazendo um papel ridículo, ofuscado pelas aparências e intrigas nos bastidores. Enquanto isso, a última das preceptoras, pouco mais velha que ele, “figura de fundo”, espera que seu antigo discípulo
 consiga abrir os olhos e enxergar a realidade. E enxergá-la... 
Simplifiquei bastante essa estranha e edipiana fábula[2], porém meu propósito era salientar uma ideia-chave em A Soberania do Bem [The Sovereignty of Good, 1971, que comento na tradução de Julián Fuks], reunião de três ensaios que a grande escritora irlandesa[3]
 publicara em periódicos nos anos 1960, paralelamente a uma profícua 
produção romanesca, e só agora publicada no Brasil: a de que o Amor 
(numa acepção fortemente ancorada em Platão) é a maneira correta de 
abrir os olhos  e escapar dos véus do autoengano. 
Apesar da densidade das suas reflexões e de referências a pensadores anglo-saxões que mal conhecemos[4],
 a leitura nada tem de árdua, pois Iris Murdoch se vale daquela forma 
eficaz que é o ensaio oriundo de uma palestra ou conferência (lecture).
 Ou seja, já no nascedouro há a exigência da comunicabilidade, da 
limpidez da apresentação, com aqueles recursos fáticos que garantem o 
ritmo do encadeamento reflexivo: “Permitam-me agora tentar 
explicar...”; “Vamos pisando com cuidado aqui...”; “Podemos neste ponto 
parar e considerar o quadro da personalidade humana, da alma, que vem 
emergindo...” São exemplos que mostram o interlocutor sempre 
presente no horizonte do discurso. Nada daqueles textos cifrados e 
autistas à Deleuze & Althusser, que
 entraram na moda justamente naquela época. 
O primeiro ensaio, A Ideia de Perfeição (1964)[5],
 questiona concepções da vontade e da liberdade que ela engloba como 
visão existencialista-behaviorista, como se nos movimentássemos numa 
ausência de fundo moral, únicos responsáveis por nossas escolhas[6]. Contra esse fuliginoso mundo psíquico, ela propõe uma moralidade da atenção[7],
 uma tarefa infinita da consciência quanto à percepção dos outros e dos 
fatos exteriores. A “liberdade”, tão importante na filosofia moderna, 
não seria um
 “salto súbito da vontade isolada para dentro e para fora de uma  lógica complexa e impessoal”, pois é sobretudo “uma função da tentativa progressiva de ver um objeto específico com clareza”[8].
 Daí a visão do Amor como conhecimento do indivíduo, um olhar que 
enxerga de fato e não apenas projeta fantasias. Para tanto, precisamos 
recuperar o papel de agentes morais ativos. A imaginação moral permite que almejemos o Bem, o ideal de perfeição. 
Em Sobre Deus e o Bem (1969; infelizmente na tradução se perde o jogo verbal do título original On God and Good),
 ela lamenta o vazio deixado pelo recuo da filosofia moral com relação a
 outras disciplinas (psicanálise, teoria social).  Apertando ainda mais o
 nó da reflexão anterior, surge a espinhosa questão: “Como é um homem bom? Como podemos nos tornar moralmente melhores?” Na falta da perspectiva religiosa, como cultivar tal objetivo, sem sermos tapeados?: 
“A
 noção de que ´tudo de alguma forma tem que fazer sentido´ protege do 
desespero: a dificuldade está em como aceitar essa noção confortante de 
um modo que não seja falso. No instante em que qualquer ideia se torno 
um consolo, a tendência a falsificá-la ganha força...” 
   Daí a sua dedicação em explorar (com a espinhosa dificuldade de conceitos tão deturpados ou desgastados[9]) os caminhos para a “excelência moral” e a “transcendência”: “O Bem está sempre além, é desse além que ele exercita sua autoridade”[10].
 Como parecem questões recônditas para os voláteis tempos atuais, e como
 no entanto elas são cada vez mais urgentes! Em todo caso, esse segundo 
ensaio me parece o coração do livro. 
No último, A Soberania do Bem Sobre Outros Conceitos
 (1967),  ela retoma mais explicitamente Platão (o seu célebre mito da 
caverna ganha toda uma fisionomia moral) e procura definir seu conceito 
de Bem e suas “intimações dispersas”, se estivermos dispostos a olhar para “fora do eu”. 
Para
 quem não é atraído (antes o contrário) pela religião, para quem 
despreza as táticas de melhora instantânea da autoajuda, mas tenta se 
pautar (e se angustia com constantes tropeços) por um procedimento que a
 partir de agora não terá mais medo de chamar de “moral”, A Soberania do Bem é uma bússola e tanto no mar da desorientação contemporânea: “O Bem não tem nada a ver com propósito; na verdade, ele exclui a ideia de propósito. Tudo é vaidade
 é o início e o fim da ética. O único modo genuíno de ser bom é ser bom 
´para nada´ no meio de um cenário em que cada coisa natural, incluindo 
nossa mente, está sujeita à mudança, isto é, à necessidade”. 
[1] “Também
 estava claro, agora, que  eu não podia ir embora. Era um prisioneiro da
 situação. Antes, naquele mesmo dia, vagando num estado de lassidão sem 
propósito, ficara fortemente tentado a partir (...) Não havia nada que 
pudesse fazer por aquela gente. Entretanto, por ardente que fosse o meu 
desejo de partir, e embora achasse que devia voltar ao meu mundo simples
 antes que alguma coisa pior me acontecesse, sabia que não podia. Era 
meu dever ficar: aquela palavra desagradável me prendia ali. Mas não era
 só isso. Percebi, alarmado, que queria ficar, mesmo. Estava me tornando
 uma peça da máquina.” (utilizo, nas citações de A moça italiana, a tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva, retiradas da edição do Círculo do Livro, s/d). 
[3]  Ela também lecionou filosofia em Oxford por anos a fio e foi aluna de ninguém mais ninguém menos do que Wittgenstein. 
Acho que todos se lembram do filme Iris
 (2001), dirigido por Richard Eyre, que retrata sua vida (especialmente 
os terríveis anos finais), com uma magnífica Judi Dench e a não menos 
gloriosa Kate Winslet vivendo a jovem Iris Murdoch.  O admirável Jim 
Broadbent,  como John Bayley, o marido, ganhou o Oscar como coadjuvante. 
[4] Hampshire, Moore, Hare, Ryle, Ayer, Austin, etc... 
[5] E segundo a autora, no Prefácio, baseado numa palestra de 1962. 
[6] “A
 imagem do homem que esbocei anteriormente me parece tanto estranha 
quanto implausível: tenho objeções empíricas simples (não acho que as 
pessoas sejam necessária ou essencialmente assim), tenho objeções filosóficas (não acho os argumentos convincentes), e tenho objeções morais (não acham que as pessoas tenham que se ver dessa maneira).” 
[7] Além de Platão, há o peso do pensamento de Simone Weil. 
[8] “Isso
 não implica que não sejamos livres, absolutamente. Mas implica que o 
exercício de nossa liberdade é algo que se dá aos poucos e de modo 
fragmentário o tempo inteiro, e não um salto grandioso e desimpedido em 
momentos importantes. A vida moral, nessa visão, é algo que se dá 
continuamente, não algo que se desliga entre as ocorrências das escolhas
 morais explícitas. O que acontece entre essas escolhas é, na verdade, o
 que há de mais crucial...” 
[9] “A
 ideia de contemplação é difícil de entender e manter em um mundo cada 
vez mais desprovido de sacramentos e rituais, e no qual a filosofia tem 
(em muitos aspectos corretamente) destruído a velha concepção 
substancial do Eu. Um sacramento oferece um lugar externo e visível para
 um ato interno e invisível do espírito. Talvez seja necessária também 
uma analogia do conceito de sacramento, embora isso deva ser tratado com
 grande cautela. A ética behaviorista nega a importância, pois questiona
 a identidade de qualquer coisa anterior ou separada da ação que ocorra 
decisivamente ´dentro da mente´. A apreensão da beleza, na arte ou na 
natureza, muitas vezes parece de fato uma experiência espiritual 
localizada no tempo que é fonte de energia positiva. Não é
 fácil, contudo, estender a ideia dessa influente experiências a 
ocasiões de pensamento sobre pessoas ou ações, uma vez que a clareza de 
pensamento e a pureza da atenção se tornam mais difíceis e mais ambíguas
 quando o objeto de atenção é algo moral...” 
 [10] “O
 principal inimigo da excelência  na moralidade (e também na arte) é a 
fantasia pessoal; o tecido de desejos e sonhos autoenaltecedores e 
confortantes que nos impedem de ver o que há fora de nós. Rilke disse 
sobre Cézanne que ele não pintava o gostei, ele pintava o aí está. Isso não é fácil e exige disciplina, na arte ou na moral.” 
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terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
iris murdoch
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