domingo, 24 de abril de 2011

SALGUEI O SANGUE DA CARNE
“Eu acredito no prazer da carne e na solidão irremediável da alma.”
Hjalmar Soderberg
Para meu amigo Paulo Lucena ( joia rara)


Meu chapéu carrega frutas
Deus disse que sabia mas não me tirou dessa.
A suavidade da pera compete com a goiaba.
Quero colorir as frutas querido leitor “lê-me, para aprender
/a amar-me”
Tudo é medido pelo tédio?
O cachorro “Nescau” uivava pra mim e dei-lhe um bico de pão.
Eu me comunico com o teu perfume de bebê.
Bem aqui perto eu tenho um oceano de uma cidade imunda.
E tudo que não presta sempre tem muita sede.
Contemplo sinal vermelho...ouvido zumbizado capta
/”pega a formiga, enche a barriga com serragem, depois costura
/a boquinha de cada uma”.
Suspendo o poema enquanto os objetos bóiam.
A infanta chora jasmins caídos.
Salguei o sangue da carne
E, depois comi a maçã verde de Magrite.

sábado, 23 de abril de 2011

CONTINUAÇÃO DE ROSADAS DICAS PARA SE ESCREVER CONTOS
38 - Para que se escreva bem, torna-se necessário aquisição de conhecimento. O desconhecimento ou, ainda, a suposição do conhecimento, fará com que o autor ignore possibilidades valiosas e utilize ferramentas inadequadas à formatação de um bom conto.
39 - Nossas anotações são nossos textos-base. E, também devemos anotar o que vemos ou que ouvimos. Uma inspiração de momento, uma idéia. Escreva até que esgote totalmente o conteúdo de sua mente, até não conseguir mais escrever. Guarde, Isso será um conto em breve!
40 - Se a informação não é preponderante para formatar um conto, elimine. Não seja, chato, cansativo ou repetitivo!
41 - Evite a construção de frases longas demais. Evite parágrafos intermináveis e não crie personagens que não terá nenhuma fundamentação. Não se engane.
42 - Tenha em mente em que estilo vai escrever e que efeito pretende causar.
43- Se você quer fazer um intertexto, tudo bem pode usar um texto-base.
44 - Não deixe a narrativa perder a intensidade. Dê novas informações, percepções. Deixe “coisas” no ar, instigue a curiosidade.
45 - Procure o equilíbrio. Um bom vocabulário qualifica o seu texto. Entretanto, cuidado para não menosprezar a capacidade de seu público.

46 - Não repita palavras em curto espaço de texto. Use sinônimos ou elimine elementos supérfluos. Fique atento a isso!
47 - As descrições são ferramentas importantes para o envolvimento no conto. Porém são breves e intensas. Evite exageros como: hipérboles
48 - O conto é um arsenal de imagens, sentimentos e emoções. Tente construções diferentes. Inverta orações, reduza artigos. Onde a trama se desenrola, é interessante dar ao leitor um pouco do perfil físico e psicológico da personagem. Sempre no ritmo da narrativa, nada de interrupções bruscas para descrições ou explicações.
49 - Todo o conto tem uma significação. Mesmo que polêmica. O texto deve ser conduzido tendo em vista o EFEITO e a SIGNIFICAÇÃO.
50 - O conto já foi dividido e dissecado de várias formas. Portanto, fica desconfortável recortá-lo a um olhar particular.
51--A ambientação é a alma do conto. Observe que a cronologia é interessante em romances e novelas. Entretanto, é de pequena importância no conto. O conto narra (geralmente) algo que já está em andamento quando o leitor iniciou a leitura, o contista deve, rapidamente, envolvê-lo no clima de sua narrativa.
52—Deve transmitir informações que se transformem em percepções, imagens, emoções.
53 --A ambientação, embora fundamental, não pode ser cansativa, com excesso de floreios, com adjetivos repetitivos. Nunca mais que o suficiente.
54 - Outro ponto muito interessante é que, durante a ambientação algo ocorreu, está ocorrendo ou ocorrerá. Naquele pequeno espaço do texto, algo muito importante vai acontecer.
55 - É a hora de dizer e não contar. É uma etapa em que, normalmente, se gasta mais tempo. Apresentam-se os fatos, o contexto. Explica-se a trama mas, apesar disso, o conto ainda não está lá. O leitor, agora já interessado, pensa “bem, vamos ver onde isso vai dar”. O final poderá ter vários nuances. Pode ser pra rir/chorar/causar remorso e o mais que desejar o leitor.

sábado, 16 de abril de 2011

Rosa Maria dos Santos nasceu na cidade
de Francisco Santos, no Piauí, dia 30 de agosto
de 1952, indo morar no Rio de Janeiro, em 1974,
aos 22 anos de idade.


Os contos dessa antologia têm como ponto de
partida o desencontro e as contradições do jogo
amoroso, a solidão, a incomunicabilidade, temas
caros a Rosa Kapila, que participa da coletânea
organizada por Esdras do Nascimento com o conto
Mar de vidro. O livro tem a proposta lúdica de ter
contada duas vezes a mesma história, por um
escritor e uma escritora, sob o olhar masculino e
feminino. Rosa Maria dos Santos escreveu Mar de
vidro em parceria com Júlio César Monteiro
Martins.

A partir de 1989, passa a adotar o sobrenome
indiano Kapila, retirando-o do bestiário fantástico
do Livro dos seres imaginários, do escritor
argentino Jorge Luís Borges. É professora e doutora
em literatura brasileira.


O OBJETO DE ESTUDO

O estudo realizado neste recorte da
obra deRosa Kapila, a partir de sua
narrativa contemporânea situada nas
décadas de 1980 e 1990, é composto
por contos de duas de suas
publicações –Baião de dois(1983): Da
cor daquele céu e Sessão das quatro;
ePrimeiro manuscrito das tentações(1997): Gata morcega, Mar de vidro,
Nas estações de Bruxelas e Primeiro
manuscrito das tentações.


A escolha desse corpusse estabeleceu por esses
contos configurarem uma espécie de
microcosmo literário, em que certas constantes
surgem para formar um todo que estrutura sua
escrita com regularidade de elementos: o
espaço urbano das grandes cidades; as relações
amorosas especialmente conturbadas entre
homens e mulheres; a incapacidade ou
impossibilidade do ser humano, imerso nos
espaços das cidades e dominado por sua
atmosfera de eterno movimento, em criar
relações duradouras, transparentes; a
inconstância do desejo; a instabilidade e
mobilidade dos personagens, numa metáfora
das suas variações e descentramentos internos.

AESCOLHADOCORPUS


O contemporâneo
e as relações de gênero

O TEMA


PERGUNTAS NORTEADORAS

1) De que maneira a narrativa de Kapila
se situa dentro da narrativa de temática
urbana e contemporânea, considerando
seus antecedentes e determinantes
históricos?
2) Quais os elementos em sua narrativa
que definem a composição de seus
personagens como característicos da
contemporaneidade?
3) De que forma a sua narrativa constrói
as relações humanas no espaço da
cidade, marcadamente as relações de
gênero no mundo contemporâneo e pós-
moderno?


ANÁLISE E REFERENCIAL TEÓRICO

1.Situamos o contexto da prosa de ficção brasileira fazendo emergir as
características e temáticas dessa narrativa, colocando lado a lado um recorte das
narrativas brasileiras de temática urbana, visualizando as mudanças políticas e
sociais que ocorreram nos anos de 1960 e 1970, marcadamente no período de
ditadura militar, e suas influências na produção cultural das décadas de 1980 e
1990: as narrativas de resistência e as narrativas da desilusão urbana. (HOHLFELDT,
BOSI, PÓLVORA, FRANCO, REIS; RIDENTI; MOTTA).


Duas visões de mundo: “um abismo instalou-se no
Brasil entre essas duas vertentes, micro e
macropolítica, num conflito inegociável que causou
muito sofrimento àqueles que traziam em sua
subjetividade a necessidade da luta em ambas as
frentes, por uma questão vital.” (ROLNIK, 2007, p.15).
A contracultura: o comportamento, a música, o
cinema, as artes plásticas, a televisão.
“Estas experiências micropolíticas deslocariam não
apenas a noção de poder –comumente articulada às
idéias de direito (Hobbes) e de violência (Marx) e
confinada à sua condição de apêndice do Estado –,
como fariam inserir o próprio corpo humano no rol
dos instrumentos políticos.” (CASTELO BRANCO,
2005, p. 53-54).
A discussão de conceitos como o de pós-
modernidade, sua aceitação ou não pelos teóricos
aqui referidos, Jameson, Hutcheon, Berman,
contribuem para os cenários no qual foi gerada a
produção literária contemporânea e, com ela, seus
traços distintivos, sua gestação e surgimento, suas
rupturas e contiguidades.


2.Abordamos, a partir dos contos de Kapila, o universo
social e cultural da cidade e de seus personagens, com
a caracterização do espaço urbano contemporâneo,
sua representação e relação com os sujeitos ficcionais,
em que os indivíduos operam o mundo complexo da
cidade, no espaço de integração e desordem da rua,
relativamente aos aspectos do nomadismo, os
processos de desterritorialização e a articulação dos
sujeitos, especialmente as mulheres, nos espaços das
cidades. (MAFFESOLI, SEVCENKO, HALL, ROLNIK,
SILVERMAN).
Nesse universo, os sujeitos estão quase sempre em
trânsito: a pé, de ônibus, trem ou avião, numa
apreensão do espaço como deslocamento. Daí, sua
funcionalidade e organicidade, tratadas como
metáforas das inquietações internas de seus
personagens.


3.Estabelecemos uma espécie de
confluência do material histórico e
literário referenciados nos capítulos
anteriores, dimensionando na história e
no espaço contemporâneo das cidades a
figura feminina que emerge da narrativa
de Rosa Kapila.

A construção dos personagens
femininos de Kapila a partir das noções
de identidade em diferentes épocas e à
luz das interpretações de
descentramento e deslocamento do
sujeito na sociedade pós-moderna,
considerando as concepções de sujeito
e as perspectivas de deslocamento da
subjetividade; o descentramento do
sujeito feminino em sua prosa ficcional
e as relações entre gêneros, em
fronteiras que se misturam.
(SILVERMAN, HALL, BHABHA, BUTLER,
MAFFESOLI, ROLNIK).


As inserções possíveis da obra de Kapila
nesse universo contemporâneo em
ebulição; as alterações significativas do
conjunto que determinaram a materialidade
de sua temática e de seu formato; os
processos históricos, sociais e literários que
conduziram o seu argumento narrativo,
aqui, sempre colocado na posição de
enfrentamento dos seus personagens com a
cidade na qual estão imersos.
Essa temática da insatisfação e da desilusão
urbana, caminho percorrido por Kapila,
cujos elementos perfazem uma composição
característica do contemporâneo, se
consolidou lado a lado com uma narrativa
que apontava para uma literatura chamada
de resistência.

CONCLUSÕES


A elaboração ficcional que constitui esse período é, pois, desde o seu nascedouro,
formada pela singularidade do contraditório: o individual em oposição ao coletivo; o
engajamento e a contestação versus o distanciamento irônico, para desembocar, nos anos
de 1980, na “livre coexistência das diferenças, das contradições, não só entre as obras, mas
até no interior de uma mesma obra.” (BARBIERI, 2003, p.16).
Essa composição do urbano em sua obra garante a sua circunscrição e o diálogo com o
contemporâneo, posto que a sua narrativa nasce com os vínculos históricos do incremento
das cidades brasileiras e de seus traços, que influenciaram os tipos humanos encontrados
em seus espaços e as linhas que configuram as narrativas dos escritores desse período.
A fragmentação lírica, as divagações, o gosto pela prosa malcomportada, em certos
momentos, o desprezo pelo discurso linear, no qual as figuras femininas, a cidade, seus
paradoxos, misturas de elementos e vontades contraditórias, ocupam lugar de centralidade.
PREFÁCIOS DE ROSA KAPILA
LIVRO: O.G. DE REGO DE CARVALHO – FORTUNA CRÍTICA.
ORGANIZAÇÃO & APRESENTAÇÃO DE KENARD KRUEL. EDITORA ZODÍACO – TERESINA-PIAUÍ (2007)

“A ESTRELA E A TEMPESTADE”
“Senti sintomas deveras inquietantes causados pelo ato
só de escrever.”
( Mallarmé)

Não cabe nas dimensões dessa breve apreciação ao livro “O.G.Rego de Carvalho (Fortuna Crítica) de Kenard Kruel “ uma discussão sobre a teoria do romance. Atentamos para a desdobra de inúmeras teses que observaram a subversão das convenções dominantes elaboradas por O. G. Rego de Carvalho, em seus enredos.
Sabe-se que a percepção da obra de arte não se dá de modo direto. Modernamente, a figura do leitor é resgatada; até porque o leitor não é uma construção do texto mas certas interpretações vingaram no tempo e foram depois contestadas e muitas tornaram-se descartadas do juízo literário. Mas leitores estabelecem estratégias de interpretação que acabam por orientar a leitura, mesmo de um texto ainda não conhecido.
O mundo das possibilidades da narrativa de O. G. Rego de Carvalho mostra uma intimidade de silêncio
de pessoas espantadas com a vida. Todo criador tem um lado confuso e complexo. Alguns escrevem por pura paixão, outros, por uma saída de si mesmo, outros por exigências sem nome. O certo é que uma força selvagem e muita vezes devastadora empurra o artista para momentos de exaltação. Na narrativa as histórias vão correndo em todas as direções, de modo que a necessidade de escrever é tão grande que ao mesmo tempo que os enredos são reprimidos, são também exprimidos e a história sai como a luz do dia anunciando-se ao mundo. As coerções às vezes são insuportáveis mas todo artista acaba fazendo arranjos e liberta-se delas. Os conflitos em O. G. Rego de Carvalho assumem uma aparência nova, forte e em um resultado literário de extrema elaboração dá-se o construto do texto.
Problemas dramáticos atormentam as personagens de O. G. Rego. Tentam dominar a morte, há também a sobriedade das grandes agonias, alguns degradam-se pelo medo de transformar-se numa estranheza repelente. Uma das funções mais importantes da ficção
é a de nos dar um conhecimento profundo e completo dos seres. As pessoas “reais “
nos decepcionam e são fragmentárias. Nesse item a ficção ganha. O romancista sempre domina, delimita, dar coerência, mostra conhecimento coeso, dar uma interpretação lógica a seus personagens. E mais: o artista deve dar a impressão de que a personagem é um ser vivo.
O. G. Rego tem muitas fixações de memória que utiliza na construção de seus personagens, as famosas florestas de símbolos.
A fala das personagens de O. G. Rego é errante, parece que elas falam sempre para fora de si mesmas, o murmúrio de algumas confunde-se com o espaço geográfico. Parece um eco. Essa ilusão que permite a Literatura faz com quê tudo se volte para o mundo das possibilidades. Os recursos criativos falam de todas as maneiras. Muitos entraves da escrita faz com que o escritor saia para o “lado de fora” do mundo e peça para si uma intimidade do silêncio. A obra de arte é “sua” obra, exprime-o, mas não a exigência extrema da obra, a arte como origem.
O.G.Rego de Carvalho pertence a uma tradição em que o que existe de mais elevado se exprime num livro que é escritura por excelência. Nós, leitores, somos atraídos por seus livros...por lembranças necessárias e, que, também servem para serem esquecidas. Nos coadunamos por um esquecimento, pelo silêncio de uma profunda metamorfose, pela renovação dos sentidos, por provas indeterminadas de memórias.
Dizem que a arte é difícil, que o artista, no exercício dessa arte, vive de incertezas. Parece que a arte, essa atividade estranha que tudo deve criar, necessidade, objetivo, meios, cria muito mais o que a constrange, o que a torna difícil. Pode-se dizer que as relações do artista com a obra são estranhas e que as experiências subvertem as formas do tempo mas sabe-se que a obra atrai aquele que se consagra para o ponto onde ela é à prova da impossibilidade.
Sabemos que escrever é o movimento do desejo que quebra o destino. Há contrariedades
Que se situam na essência da escrita, a dificuldade da experiência e o salto da inspiração.
No nosso tempo, a realidade se apresenta e nos propõe meios mais fáceis, como se pudéssemos dissimular a facilidade numa exigência extrema. Muitos têm o dom mas nem todos desvendam esse dom, até porque sem o recurso do talento e da cultura, há uma insegurança do inacessível, a experiência infinita do que nem mesmo pode ser procurado, a prova do que não é provado, de uma pesquisa que não se faz e de uma presença que nunca é dada. Sabe-se que o imediato nem sempre é aquilo que está próximo. Como dizia Holderlin, para se escrever há uma necessidade “de uma força terrível do abalo.”
Mas será escrever uma ilusão? Se o é, ela não se impõe como uma miragem que dispensaria ao artista uma visão fácil, mas como como uma tentação que o atrai para fora dos caminhos seguros e o arrasta para o mais difícil e o mais longínquo.
Em seus livros O.G. Rego descreve um estado de suspensão e de paralisação que encanta e afasta os pensamentos. Dá às personagens de suas histórias uma vigorosa melancolia, faz longos encaminhamentos do tempo, reage ao tempo no agir. Ele é um criador capaz e dessa capacidade deixa seu vestígio no mundo.
Os elementos tensivos de qualquer obra e, essa leitura crítica pela qual o leitor, convertido em especialista, interroga a obra para saber como ela é feita, pede-lhe os segredos e as condições de sua criação, indaga severamente, em seguida , se ela responde bem a essas condições... o leitor, feito especialista, torna-se um autor às avessas.
O verdadeiro leitor não recria o livro, ele volta a uma possibilidade entre outras, para reencontrar assim a sua inquietação. Ler bem um livro é a leveza de um movimento de paixão.
Rosa Kapila
Edifício Imperador, 23 de novembro de 2008.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O ENCONTRO DE KAPILA & BORGES
Ensaio de Mainar Baal

(Professora de Literatura Brasileira na University of California, Berkeley em Berkeley, Califórnia, nos Estados Unidos.)

I – Introdução




Estudaremos “A intrusa” de Jorge Luis Borges e “Objetos” de Rosa Kapila.

O conto de Borges foi publicado em 1970, no livro “O Informe de Brodie”, o autor faz uma síntese dos temas mais recorrentes de sua obra. Citações, reflexões, duelos e o mito do eterno retorno são alguns dos assuntos abordados no livro, escritos na elegante prosa borgeana.
“ Objetos” de Rosa Kapila se encontra no livro Pulso de |Lamê, publicado em 1989 (Rio de Janeiro )
lançamos mão da teoria simbólica e lingüística de Lucia Santaella. De acordo com a teórica embora radicalmente distintas nos pressupostos e propósitos, há pelo menos duas teorias bastante conhecidas nas quais os conceitos de texto e signo se entrecruzam. De um lado, está o lingüista dinamarquês L. Hjelmslev; de outro, o lógico e filósofo norte-americano C. S. Peirce.
Segundo nos informa J. Dines Johansen , Hjelmslev define texto como um processo lingüístico, a cadeia de signos combinada num sintagma, em contraposição à linguagem concebida como um sistema. A diferença entre texto e signo não está no fato de que o signo é uma parte do sistema da língua enquanto o texto é uma parte da linguagem como processo, uma vez que o signo é, a um só tempo, uma unidade de manifestação e um elemento da linguagem como processo. O signo é, assim, definido funcionalmente como uma unidade mínima de significação. Isso quer dizer que, em muitos casos, signo e texto podem coincidir. É por isso que a distinção entre ambos só pode ser funcional. De modo geral, no entanto, o texto lingüístico é uma cadeia de signos com suas regras combinatórias. Assim sendo, de um lado, temos o signo concebido como o elemento lexical e morfológico, de outro, o texto como a combinação de signos em cadeias mais longas ou mais breves.
Entretanto, a delimitação de tais cadeias não pode nunca ser predeterminada teoricamente, visto que qualquer delimitação vai sempre depender de situações comunicativas ad hoc. É por isso que, para Hjelmslev, em contraposição ao senso comum, a cadeia do texto, dentro de uma língua viva, é considerada como um processo contínuo e expansivo. Isso está de acordo com os propósitos da lingüística, que busca estabelecer princípios capazes de dar conta não apenas de textos individuais, efetivamente produzidos mas, antes de tudo, de todos os textos que podem ser corretamente produzidos de acordo com o sistema da língua em questão. Desse modo, a produção e interpretação de um texto individual devem ser concebidas, segundo Johansen, como segmentos que são recortados e insulados de um processo de significação permanentemente em curso. Nesse sentido, todo o texto atualizado é sempre um fragmento, o que está perfeitamente de acordo com a afirmação borgiana de que a idéia de um texto definitivo só pode pertencer à religião ou à fadiga.
IV- Teoria da intertextualidade

Para compreendermos melhor a teoria da intertextualidade, citamos o teórico Massud Moisés que compara os poetas Gonçalves Dias e Murilo Mendes com os versos do Hino Nacional. Entendemos que as analogias nas artes dão-se em todas as línguas, e também com poetas e ficcionistas. O poema de Gonçalves Dias possui muitas virtualidades de sentido, Entre elas, a exaltação ufanista da natureza brasileira. Para ele nossa pátria é sempre mais e melhor do que os outros lugares. Os versos do Hino Nacional retomam o texto de Gonçalves Dias para reafirmar esse sentido de exaltação da natureza brasileira. Já os versos de Murilo Mendes citam Gonçalves Dias com intenção oposta, pois pretendem ridicularizar o nacionalismo exaltado que pode ser lido no poema gonçalvino.
Um texto cita outro com, basicamente, duas finalidades distintas:
a) para reafirmar algum dos sentidos do texto citado;
b) para inverter, contestar e deformar alguns dos sentidos do texto citado; para polemizar com ele.
Em relação ao texto de Gonçalves Dias, o Hino Nacional enquadra-se no primeiro caso, enquanto o de Murilo Mendes encaixa-se no segundo. Quando um texto cita outro invertendo seu sentido, temos uma paródia. Os versos do Hino Nacional, colocados no princípio desta lição, parafraseiam versos de Gonçalves Dias; os de Murilo Mendes parodiam-nos.
A percepção das relações intertextuais, das referências de um texto a outro, depende do relatório do leitor, do seu acervo de conhecimentos literários e de outras manifestações culturais. Daí a importância da leitura, principalmente daquelas obras que constituem as grandes fontes da literatura universal. Quanto mais se lê, mais se amplia a competência para apreender o diálogo que os textos travam entre si por meio de referências, citações e alusões. Por isso cada livro que se lê torna maior a capacidade de apreender, de maneira mais completa, o sentido dos textos.

1-A Intrusa e Objetos

Os contos A intrusa de Jorge Luís e Objetos de Rosa Kapila têm uma metodologia e uma didática em comum no que diz respeito ao discurso direto, e o discurso indireto livre; além das relações amorosas (o triângulo em A Intrusa) e o quinteto em Objetos). As relações dos contos mostram também que há uma arte realista, refinada e sólida nos dois autores analisados.
Em Borges há um registro de que a “Tarefa da Arte” não é de apenas anotar mas, sim, a de fazer a vida; em Objetos a realidade é uma coisa construída, não anotada; as tensões da história se dão entre “o idealismo” e a “realidade”.
A falta de dinheiro de Celina é um símbolo que a persegue em qualquer lugar. A crise pessoal da pessoal da personagem central de Objetos é também filosófica e estética. Em A Intrusa o leitor torce para que haja uma solução agradável da materialidade do mundo de Juliana Burgos. Mas o símbolo mais forte da história fala mais alto: a morte. Nada pôde ser feito para que Juliana fugisse da triste destino traçado por seus algozes. O final de A Intrusa (embora mais ou menos anunciado) é perturbador para os leitores, porque a linguagem sugere que existe um potencial para heroísmo, até mesmo no indiferente mundo realista. Na verdade, Borges oferece ao leitor a metáfora mais crucial, a morte.
De acordo com o dicionário de símbolos de Juan Eduardo Cirlot (p. 392) a mulher morta tem um significado especial. A imagem, visão ou sonho de uma mulher jovem morta, em seu sepulcro é um símbolo direto da morte da anima. Fala disto a lenda francesa da rainha Blanche, citado por Gérard de Sé de em Les templiers sont parmi novs. Este autor, com o mesmo propósito, relaciona com os nomes de Isis, uma legendária yse dos templários e yseult ou Isolda. Georg Gichtel, discípulo de Jacob Boehme, refere-se ao mesmo símbolo da donzela ou rainha morta (em realidade ou aparentemente, quer dizer, adormecida, como no conhecido conto de fadas) e diz que esta imagem corresponde “à corrupção do carpo luminoso paradisíaco”.
A presença discreta de um narrador em A Intrusa mostrou que a história pôde ser contada de uma forma equilibrada e deu a impressão ao leitor que a narrativa se conta a si próprio, de preferência, temos essa impressão porque a história alojou-se na mente do narrador que faz o papel de refletor de suas idéias. Houve em A Intrusa uma espécie de centro organizador da percepção que trabalhou coerentemente todos os outros elementos da narrativa: da linguagem ao ambiente em que se movimentam as personagens.
Em Objetos a coisificação dá-se quando Celina abre mão de todos os seus amores e tente “comprar o sexo”.Neste momento o texto é desmontado e os personagens se confrontam com uma realidade e incompreensível para a mente humana.
“Apesar de inúmeras teorizações sobre a literatura fantástica, Borges sempre teve uma nostalgia pela velha e querida literatura” realista “. A Intrusa (1966) é um conto classificado como realista e está inserido no livro El Infrome de Brodie; neste livro Borges inclui como prólogo um manifesto a favor do realismo. A Intrusa marca o retorno de Borges à narrativa, depois de um longo período em que devido à crescente cegueira, não podia escrever e teve que aprender a ditar. O conto foi transcrito pela mãe. A mãe rejeitava o argumento (que se baseia em uma variante da velha convicção gauchesca de que as mulheres não valem nada e de que Pampa um companheiro é o ser mais importante do mundo). A mãe ajudou Borges no final, lapidando o diálogo. Borges trocou o lugar e tempo para escrever uma fábula mais remota e primitiva; para evitar a insinuação de homossexualidade, fez os protagonistas irmãos” (3, p.470).
Há em A Intrusa um realismo que choca o leitor. O texto é ambíguo e os protagonistas têm suas leis próprias, não sofrem punição. O conto segue qualidades e tendências antigas – mas não perde sua essência de história completa, fechada como um ovo. Recorremos à teoria do próprio autor que possui material ilustrativo para as mais belas histórias modernas.

2- Narrador trapaceiro

Inicialmente, o conto A intrusa remete o leitor para uma passagem bíblica (2 Reyes, 1, 26), mas a referência se encontra no segundo livro de Samuel:

Angustiado estou por ti,
meu irmão Jônatas;
tu eras amabilíssimo para comigo!
Excepcional era teu amor,
Ultrapassando o amor de mulheres. (1, p.268)


De acordo com Massaud Moisés (p, p.189) epígrafe vem do grego epigraphê, escrever (gráphein) sobre (epí), que quer dizer: inscrição/título ou frase que serve de tema a um assunto. Sentença ou divisa posta no frontispício de livro, capítulo; princípio de discurso, conto, composição poética.
A partir da citação bíblica o narrador desenvolve as idéias do conto e traz de volta a chave do pensamento borgeano: o artifício.
No texto “A Intrusa” há a presença de um narrador onisciente que de forma astuciosa emprega a “trapaça”. Talvez seja a melhor explicação para o “erro” na epígrafe. O leitor desavisado tomará com certa a passagem da bíblia 2 Reyes, 1, 26. O narrador especula em suas formas mais diversas o capítulo e o versículo, sim, mas em outro livro: II. Samuel.

Dicen (lo cual es improbable) que la liistoria fue referida por Eduardo, el menor de los Nelson, en el velorio de Cristián, el mayor...La segunda versión, algo más prolija, confirmaba en suma la de Santiago , con las pequeñas variacones y divergencias que son del caso. La escribo ahora porque en ella se cifra, si no me engaño, um breve y trágico cristal dela índole de los orilleros antíguos. Lo haré con probidad, pero ya preveo que cederé a la tenteción litaria de acentuar o agregar algún pormenor. (2, p.403)



Com um flash-back o foco narrativo aponta para o passado de dois irmãos (Eduardo e Cristián) e uma mulher (Juliana) por quem os dois se apaixonam. A fábula seria simples se não estivéssemos diante de uma literatura que se constrói sobre a literatura:
Num jogo intelectual e convencional o narrador usa “artifícios” para contar a saga dos Nilsen, explorando todas s possibilidades da linguagem, acrescentado a esta elementos novos. O texto de Borges faz uma reduplicação do processo narrativo e enfatiza a idéia de um livro escrito por todos. O pensamento borgeano é de que qualquer obra aponta para outras e que a reescritura se pauta no reenvio constante de um texto a outro.
O narrador de A Intrusa tem receio de ceder à tentação literária e acrescenta muitos pormenores à lustória ouvida. A focalização vai se alternando na medida em que a intriga cresce em tensões; o narrador convida o leitor a participar do conto e se torna intruso e palpiteiro:

Estoy lo que ignoramos, acomprrender lo unidos que
fueron. Malquistarse con uno era contar con dos enemigos...

El arreglo anduvo bien por unas semanas, pero no podía duarar...

Cristián se fue a Morón; en el palenque de casa que sabemos
Reconoció al overo de Eduardo.

Volvieron a lo que ya se há dicho. La infame solución había fracasado; los dos habían cedido a la tentación de hacer trampa.
(2, p.404 - 405)


O triângulo amoroso de “A Intrusa” cria na trama a expectativa de um assombro e a sugestão de fratricídio que não vai se concretizar. “Caín andaba por ahí pero el cariño entre los Nilsen era muy grande – i quién sabe qué rigores y qué peligros habían compartido!” (2, p.405).
A primeira versão da história é contada por um dos protagonistas no velório do assassino de Juliana, a Segunda versão por um figurante e a terceira pelo narrador onisciente e que só participa da história para ouvi-la e contá-la em versão definitiva. A verossimilhança do texto se dá pela realidade e ficção fundidas. Os dois irmãos praticam o discurso direto, e Juliana nunca fala. O narrador desmonta, corrige e refuta o texto, porém as personagens continuam diante de uma realidade confusa e desordenada, num universo incompreensível para a mente humana.
Há no texto de Borges um destino traçado para Juliana e esse destino por mais complicado que seja consta na realidade de um só momento: a exclusão de sua individualidade e seu nível de existência. Juliana é literalmente “uma coisa”.
“Cristián se levantó, se despidió de Eduardo, no de Juliana, que era una cosa, montó a caballo y se fue al trote, sin apuro” (2, p.404).
O silêncio de Juliana Burgos – a redução de sua linguagem a zero – marca nitidamente o caráter circular dado à história: essa personagem deve ser vilipendiada para não comprometer a privacidade e solidão tão essencial a Eduardo e Cristián. Juliana não tem passado / presente e nem futuro, apareceu do nada e, de criada passa a amante dos dois irmãos. De um jeito bem machista os dois homens abusam de sua ingenuidade. Poderíamos traçar um paralelo entre Juliana Burgos e algumas personagens femininas de Dalton Trevisan.

A Virgem e a Mãe ficam em casa, local sagrado e seguro onde os
homens têm o domínio das entradas e saídas. E a prostitua fica na
rua, ou nos bordéis e casas de tolerância, locais onde o código da
rua invade o espaço interior. Essa mulher, símbolo sexual de uma sociedade mercantilizada, é intersticial, isto é, não se enquadrando nesses paradigmas, guarda uma ambigüidade que apaga e ao mesmo tempo aviva os extremos. Nem Virgem-Mãe, nem prostituta, virtualmente as duas coisas, ela monopoliza o desejo, embebeda a fantasia, mas ao final evidencia-se como um logro, presença simulada e, por isso mesmo, de contornos borrados. (11, p.71)


O narrador de “A Intrusa” tece comentários, expressa opinião, desmascara os protagonistas e sugere que a existência humana é uma peregrinação, um itinerário errante, à procura de um centro, um segredo ou uma saída.
Há um conflito fundamental em “A Intrusa”: o problema da permanência do ser, no âmbito de um mundo que se afigura irreal a cada momento.
Nesse texto Borges mostra o mundo como um labirinto agressivo, em que um ser persegue o outro.
Os últimos parágrafos do relato são curtos e o narrador evidencia a identificação da mulher coisificada com alguns objetos: couros pardos / Burgos / bugigangas.
Mais uma trapaça foi praticada no relato: a vítima foi enterrada com seus objetos e roupas. Não sobrou nenhum indício da mulher. A última linha do texto é ambígua, talvez para enfatizar a cultura gaúcha e machista ou mesmo para a conservação da amizade masculina.
“Se abrazaron, casi llorando. Ahora los ataba outro vínculo: la mujer tristemenete sacrificada y la obligación de olvidarda” (2, p.406).


VI- Conclusão

Sendo o conto uma narrativa curta, que tem como característica central condensar conflito, tempo, espaço e reduzir o número de personagens, concordamos que a metodologia usada por Rosa Kapila transcende criticamente às sugestões orientadas para esse tipo de narrativa curta. Se em A intrusa temos um triângulo em Objetos há um quinteto com características amorosas diferenciados do primeiro conto analisado. Se todo conto se estrutura sobre cinco elementos: enredo, personagens, tempo, espaço e narrador, os dois autores estudados adotam, ainda, o fantástico e o psicológico para elaborar o enredo de suas histórias.
Objetos chama a atenção para o fato de que a vida é um desperdício contínuo, fabuloso, e que somente através de uma estrutura, de um método, organização ( a Arte) poderemos apreender esta mesma vida e aceitá-la compreensivamente:

Juan pedia para eu largar aquilo e praticar outras experiências na vida, mas eu não sentia desejo. Um dia cheguei em casa e Juan escondeu alguma coisa. Descobri que me esculpia. Aqueles objetos especiais me causavam certa ansiedade. Numa manhã em que ele se encontrava bem –humorada, lhe perguntei:
- Se você quisesse vender, ganharia dinheiro com esses seus, trabalhos?
- Não estou preocupado com isso, Celina. Farei “arte pela arte” até a morte (Objetos, p.66)



Podemos comprovar a paixão da personagem Juan pela arte várias passagens do texto. Desde o momento em que decide transformar-se em escultor até a hora em que coloca fogo em suas “imagens amorosas” e transformou tudo em cinzas. No conto Objetos dos há um processo artístico (a confecção de objetos de arte) e um processo natural da vida (a vida financeiramente apertada de Celina e Anne Hill). Por falta de dinheiro Anne Hill deixou de usufruir da vida profissional de contava.
Os “fatos reais” da vida tiranizam Celina (ter que dormir de favor no carpete de um escritório, por falta de moradia).
Mas um dos elementos mais importantes do conto Objetos é o ponto-de-vista (o foco narrativo). A consciência central da narradora faz com quê todos os personagens da história sejam observadores e analisados por ela. Todas as situações da narrativa (enredo e ações) e todas as decisões da história são de responsabilidade da narradora (que tudo vê e tudo comenta). Todos os personagens agem de acordo com o ponto-de-vista de Celina.
Em Objetos, sentir e agir são coisa só, partes de um todo único que agem entre si; a ação em si é qualificada pelo sentimento que suscita; o sentimento derrota a natureza da ação. Pode acontecer que a ação seja efêmera, ou mesmo que não ocorra:

Antes de mudarmos para o apartamentinho da rua sem saída, fizemos uma lista do que levaríamos. Nos preocupamos mais em vender o que chamávamos de “objetos supérfluos”. O combinado foi que usaríamos a mesma escova de dentes e dividiríamos o pijama por dois. Ele dormiria com a calças e eu com a blusa. Levamos pouquíssimos livros e apenas os discos de Anne Hill. (Objetos, p.65)


Em qualquer acontecimento da narrativa, o controle de toda a história é exercido pelo narrador. A sutileza e a aplicação da contista nos mostra que uma bela ficção necessariamente não necessita de grandes ações e nem de vastos panoramas, o mais importante é o alcance da consciência central da ficção circunscrita na verdade e na verossimilhança. O mais importante é que as ações e situações da trama se apresentem ao leitor como artisticamente real.
Outra questão apresentada em Objetos é a demarcação do tempo. No momento a focalização da narrativa recai sobre a narradora que tudo sabe e tudo abarca numa visão panorâmica. As relações que o narrador mantém com o universo diegético e também com o leitor representa um fator de relevância primordial na constituição da narrativa. A narradora intercala o discurso indireto livre para contar os fatos da história:

Chegava à casa de Lúcio pelos fundos. Ele me deva uma chave (..)
Ela não sabe que venho aqui? – Perguntei-lhe numa tarde em que não me fitava.
Ela é cega – respondeu-me com olhar distante. (Objetos, p.67)

Objetos difere de A intrusa em alguns pontos e muito se aproxima em outros. Enquanto em A intrusa o narrador se sente na necessidade de explicar mistificadoramente aos seus leitores o modo como a existência humana é uma peregrinação; em Objetos, a narradora (que também vive a história) procura um centro, uma saída – embora não a encontre facilmente. O conflito maior de Objetos é a transitividade da vida e a busca de apoio financeiro para sobrevivência. Na introdução do conto a narradora procura autenticar com a chancela de veracidade, a sua narrativa mas ao mesmo tempo, endossa ilusoriamente a outrem a responsabilidade da focalização, tentando, com isso, escamotear a realidade plausível e à qual também, a obra de arte não pode fugir que é a sua realidade interior:

Vendemos a mesa com a desculpa de que ocupava muito espaço. O guarda-roupa foi construído quase no teto. Tudo era suspenso, nada que tocasse o chão nos interessava dentro de casa. Nossa pobreza se qualificava de forma interessante porque eu não possuía dinheiro, mas ele sim. Resolvi amigavelmente combinar com tudo por ser chegada a essas questões de experimentos. Juan era uma figura interessante e “doméstica”, no bom sentido. Construía tudo dentro de casa e isso me preenchia um pouco. Um homem bastante feminino que vivia dizendo os homens agora que se rebolem para alcançar as mulheres. (Objetos, p. 65)


Rosa Kapila usa artifícios que todo autor utiliza no fingimento literário. A voz da problemática da ficcionalização recai na coisificação e nos símbolos. Se em Borges há um destino traçado para Juliana, em Objetos esse destino pode ser modificado pela protagonista Celina. Se em A Intrusa Juliana é literalmente uma “coisa”, Celina tem mais sorte porque manipula “as coisas” (os objetos) e pode jogar as cartas, já que é narradora da história – destino que não pode ser modificado por Juliana – que não tem voz na narrativa.
A onisciência de Objetos dá-se com todas as personagens da trama. A narradora testemunha a intransigência de Juan:

Dias depois tive outra novidade em casa: Anne Hill. Observei que não estava apenas nos visitando.
- Ela vai morar conosco – disse Juan.
- Você vai comprar outra escova de dente ou usaremos a mesma? -perguntei antes de ser apresentada à fabulosa cantora.
- Eu não escovo dentes – falou Anne. – O que eu gosto mesmo é de comer bem.
- Ele fará comida para você, não se preocupe.
Juan construiu outra cama embutida na parede e dormíamos os três, lado a lado. Anne passava o dia tomando chá e fritando ovos. À noite Juan lavava a panela e a pia que ela deixava engordurada. (Objetos, pp. 68-9)


Em Objetos, a história acontece com as relações que a narradora mantém com o universo das personagens que ela vai conhecendo ao longo de sua vida.
Há uma personagem secundária no conto que tecem modulações muito importantes na trama. Existe uma distância entre Celina e a esposa cega de Lúcio, seu amante e esta mesma distância é a motivação que determina o clímax da trama com o rompimento do amor de Celina por Lúcio. Entre Lúcio e Celina há muitas distâncias: de teor ideológico, psicológico, financeiro, ético e filosófico. Amadurecida ou com uma bagagem maior de experiência, o eu narrador, ao rememorar eventos do eu narrado, assume uma atitude irônica e às vezes solidária perante o eu narrado, instaurando entre ambos uma relação ambígua e complexa de continuidade de amizade e ruptura.
Objetos adquire uma acentuada objetividade porque a narradora é apenas uma testemunha dos acontecimentos da trama, permanecendo portanto, como exterior em relação à interioridade e à motivação profunda dos atos dos personagens que a cercam. A narradora só analisa o que se passa no exterior de cada personagem com o qual convive:

Fui para meu espaço. Do janelão olhava para ela na mesma posição. Não sabia seu nome e nem desejava sabe-lo um dia. Certamente os empregados haviam falado de mim. Ela era uma mulher clássica, não saía da linha, nem com a vista perdida. Não vai morrer tão cedo, pensei. (Objetos, p. 70)


O que Rosa Kapila consegue atingir em Objetos é uma intensidade de ilusão, coisa indispensável em toda narrativa. O conto precisa de elementos de incertezas para gerar essa ilusão da vida. A visão da narradora de Objetos é falível de enganos e restritiva.
A escritora Rosa Kapila trabalha com um realismo subjetivo, com uma focalização restritiva e chama o leitor para participar a trama da narrativa. Em objetos há fatos que sugerem várias interpretações, há dúvidas e equívocos que permanecem até o final da história. Também há silêncios que ninguém revela. Naturalmente a narradora intervém com comentários e apreciações. O certo é que a natureza secreta de Celina é bem diferente da de Juliana Burgos 0 a primeira faz pequenas revelações e a segunda morre sem que nós, leitores, saibamos o que se passava nos recônditos de sua alma.



VII- Bibliografia

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979
BORGES, Jorge Luís. O informe de Brodie. Globo: 1999
CASSIER, E. Linguagem e Mito. São Paulo: Perspectiva, 1972
CITELLI, A. Linguagem e Persuasão. São Paulo: Ática, 1988
COSTA LIMA, L. (Coord. E Trad.) A Literatura e o leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 (Org.) Teoria da Literatura em suas fontes. 2. ed. V. 2. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983

FIORIN, J.L. Para entender o texto. Leitura e redação. São Paulo: Ática, 1997. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 1996
FONTES, J.B. As obrigatórias metáforas. São Paulo: Iluminuras, 1999. O livro dos simulacros. Florianópolis: Editora Claviórdio, 2000
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez/Autores associados, 1988

GUIMARÃES, E. A. A articulação do texto. São Paulo: Ática, 1990
HAYAKAWA, S. I. A linguagem no pensamento e a ação. São Paulo: Pioneira, 1976

JOBIM, LUIS. Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

KAPILA, Rosa. Pulso de Lamê. Rio de Janeiro: Imago, 1989

KEEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1989. Oficina de Leitura: teoria e prática. Campinas: Pontes, 1993.

KOCH, I. G. V. Argumentação e Linguagem. São Paulo: Cortez, 1984.
LAJOLO, M. “Tecendo a leitura” In Leitura: teoria e prática. Campinas: Mercado Aberto, 1984.

& ZILBERMAN R. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1989.

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PROUST, M. Sobre a leitura. Trad. Carlos Vogt. Campinas: Pontes, 1989.
SILVA, E. T. (org.) Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988.
SOBRAL, M. e AGUIAR, L. (org.). Para entender o Brasil. São Paulo: Editora Alegro, 2000.

Anônimo. As Mil e Uma Noite. Versão de Antoine Galland. 2a ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

FONSECA, Rubem. “O passeio noturno” In: Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda., 2000.
CONTINUAÇÃO DE ROSADAS DICAS PARA SE ESCREVER CONTOS
1 – Não sofra de falta de imaginação.
2—Espante o intimismo para longe. Formule uma” retórica lendária” sobre sua pessoa.
3—Misture sempre um tom arcaico com ficção científica.
4 – Quando não tiver enredo lembre-se dos seus 5 a 10 anos. Há uma arca perdida nesse entrecho de idade.
5- Sabe-se que “Bullying” virou um folclore antipático. Não se preocupe com ele, todos nós, humanos passamos por isso e ninguém morre de bullying.
6- Se a narrativa alongar-se, evoque: sofrimento, tortura, angústia, constância, dedicação e amor.
7- Se for para ser realista, trabalhe em primeiro lugar o psicológico.
8 – Invente personagens alegóricos, ações altamente simbólicas e uma prosa poética cheia de retórica.
9 – Não faça esforço para ser realista.
10 – Elegância, estilo e convenções literárias não fazem mal a ninguém.
11 – Ficção não precisa de valor documentário.
12 – Faça uma lista de todas as casa que você morou na infância . Depois “rebole” para lembrar-se das casas, ruas, acontecimentos, vizinhos , amigos de infância, escolas e seus afazeres prediletos.
13 – Seja exagerado (a) e um mistério para seu leitor.
14- Pegue como herança as fantasias sensacionais e alucinantes de Poe, Faulkner, Hawthorne, Melville, Gertrude Stein, John Dos Passos, Kerouac, Henry James, Thomas Wolfe, Hemingway, Julia Elizabeth, Whitman e mais uma trezena de autores (as)
15- Lute para escrever mesmo que tudo em seu entorno conspire contra. Seja seu herói (heroína), não consiga dormir quando sua mente começa a funcionar. Chore à noite.